O CEC apresenta nesta semana mais uma das suas críticas cinematográficas das revistas Apokalipse. Publicamos um texto do sócio João André sobre o filme “Dancer In The Dark” do realizador Lars Von Trier no número 27 da Revista Apokalipse (2001).
Dancer In the Dark, 2000
Dancer in the Dark, o mais recente filme de Lars von Trier pretende ser um musical. É esta a primeira e talvez única ilação concordante que se pode retirar desta obra. Este filme faz parte de um tríptico dedicado a figuras femininas e que é completado com o fabuloso Breaking the Waves (Ondas de Paixão) e o “dogmático” Os Idiotas.
Mas, mais que dedicado a figuras femininas, é dedicado a sacrifícios de mulheres em prol, geralmente, de homens. Se em Breaking the Waves Emily Watson se sacrificava pelo marido, preso a uma cama, a personagem d’ Os Idiotas sacrificava-se pela comunidade de que fazia parte, uma comunidade que optara por um estilo de vida e à qual ela, na sua ânsia de se integrar, se entregava às vicissitudes do grupo.
Em Dancer in the Dark, temos a personagem de Björk (numa magnífica interpretação, mas já lá iremos mais à frente), uma mãe checa nos Estados Unidos dos anos 50 que, em vias de cegar devido a uma doença que o filho também tem, se entrega de todo aquela que acredita ser a sua missão: ganhar dinheiro suficiente para pagar a operação que impedirá o seu filho de cegar. Nesta personagem, de nome Selma, reside uma verdadeira paixão pela música e por tudo o que à música diz respeito. Será esta a única paixão a aproximar-se, em intensidade, aquela que ela nutre pelo filho.
De tal modo que, durante o trabalho, no caminho para casa ou até durante um julgamento, Selma, envolta em escuridão, associa os sons soltos que vai ouvindo e cria música, imaginando números musicais a seu bel prazer, números estes em que é a estrela e o alvo de todas as atenções, ao melhor estilo dos musicais da era de ouro de Hollywood. É, portanto, durante estas divagações, que von Trier constrói os números musicais que vão pulando no filme.
O problema da intenção de von Trier em realizar um musical começa, no entanto, por esbarrar no seu desconhecimento dos códigos formais deste género cinematográfico. De facto, ao começar por permanecer fiel ao seu Dogma, filmando de câmaras domésticas em punho, com cenários naturais e som ambiente, o realizador condiciona enormemente à partida o seu projecto. Será, para além de tudo, discutível que von Trier se tenha permanecido fiel ao espírito do Dogma ao longo de todo o filme, tendo realizado as sequências musicais com recurso a música que, manifestamente, não parecia estar lá. Mas, retornando à questão de ser Dancer in the Dark um filme musical ou não, torna-se necessário, de facto, recordar o enquadramento da acção.
O filme passa-se, ao que parece, no Midwest americano, uma zona pobre, dividida entre o rural e o industrial, à partida pouco prometedora para o idílio geralmente retratado neste tipo de filmes. Excepções haveria, sem dúvida, quem não se lembra do famoso “Acho que já não estamos no Kansas” de Dorothy, no filme O Feiticeiro de Oz, um dos marcos do género. Ou os vários filmes do tipo Cinderela em que os musicais eram tão profícuos, tal como acontece com a grande referência de von Trier para Dancer in the Dark: Música no Coração, obra com diversas referências, tanto implícitas como explicítas ao longo do filme. Mas o filme não é nenhuma história da Cinderela nem tem alguns golpes de história que permitam um “… e viveram felizes para sempre”.
Não deixa, no entanto, de aflorar a ideia, com as tentativas desastradas da personagem de Peter Stormare (fica a dúvida se o desastrado é o personagem, por exigências do argumento; Peter Stormare, por incapacidade de representar a personagem; ou de Lars von Trier, que parece não dar qualquer verdadeiro cunho ao papel, tal como o faz em relação a todos os secundários) nas suas mostras de amor por Selma. O desenrolar do filme, contudo, com um despedimento, uma traição, um roubo, um homicídio e, finalmente, uma execução, contraria este espírito. O próprio início do filme vai contra as regras, ao desenvolver a história toda explicando‑a antes de vermos o primeiro número musical. As regras do género são, portanto, completamente subvertidas pelo cineasta dinamarquês ao longo do filme. O movimento está ausente do filme, as cenas musicais padecem de uma enorme sensação de peso nas coreografias de câmara e os actores não são, definitivamente, indicados para as coreografias desempenhadas.
O mérito de von Trier parece estar no facto de assumir este facto. As recorrentes chamadas de Música no Coração, na forma de uma peça de teatro amador na qual Selma entra, parecem querer dizer isso mesmo. Na figura do encenador podemos, talvez, vislumbrar o realizador, demonstrando claramente o seu desconhecimento do género e do estilo de música escolhido (as próprias preferências musicais de von Trier, segundo o próprio, ficam-se pelos Abba e pouco mais, resultado de um passado com pais hippies desconfiados do establishment que os Estados Unidos tentavam exportar para a Europa). Nos actores da peça podemos observar o incómodo dos actores do filme em filmar num ambiente no qual não se sentem bem. Não será, certamente, a melhor forma de filmar um musical, mas ajuda a construir o ambiente pesado e de tragédia adivinhada que o realizador pretende para o filme.
De referir, contudo, a excepção a esta regra. Esta centra-se na cena da canção I’ve seen it all, porventura o momento mais conhecido do filme, mercê do videoclip que tem vindo a passar na promoção da banda sonora. Esta cena, filmada com recurso a cerca de cem (sim cem — 100!!) Handycams, foi a única a apresentar um estilo a aproximar-se do típico musical, tendo também beneficiado de ser a única filmada inteiramente no exterior, beneficiando assim da maior quantidade de luz disponível, o que lhe transmite a sensação de alegria que transporta.
Björk. Que dizer desta artista islandesa? No seu primeiro filme Björk consegue algo de indescritível. Transmite a sensação de se ter tornado na sua personagem, objectivo que era inicialmente pretendido, dada sua incapacidade, segundo a própria, de representar. De facto, Björk, foi escolhida por von Trier para o papel (escolha que levou ao reescrever do argumento originalmente previsto) após este observar uma notícia que mostrava a cantora a proteger o filho de uma multidão de papparazzis à chegada a um aeroporto. Esta tentativa desesperada de proteger o filho e o conhecimento, posterior, do hábito que Björk tinha, na Islândia, de criar música a partir dos sons que ia captando, à semelhança do que faz Selma, foi suficiente para convencer o realizador que a sua Selma estava encontrada.
A coabitação entre os dois não foi, apesar disso, pacífica. Ambos com uma personalidade muito forte, levaram a que o filme fosse rodado num verdadeiro ambiente de guerrilha o que acarretou, no final, à ruptura entre os dois. Este ambiente, no entanto, não extravasa para o filme, antes parecendo que se estabeleceu uma relação de amor-ódio entre von Trier e Björk, dada a apaixonada fixação que a câmara parece ser pela personagem de Selma, a ponto de fazer parecer que os restantes actores ali estão a fazer o papel de máquinas debitadoras de deixas. Com efeito, Catherine Deneuve não consegue agarrar a personagem, não por incapacidade própria, mas por não conseguir entender o seu papel ali. Sobre Peter Stormare já atrás se referiu a quase inutilidade da sua personagem no filme. David Morse recebe, ainda assim, a única personagem digna desse nome, a única (para além de Selma, claro está) que tem a honra de receber uma textura e complexidade acima do superficial.
É possível, apesar de tudo, que seja essa a intenção de von Trier, afinal de contas, o filme é rodado do ponto de vista do mundo de Selma, não havendo uma única cena que seja filmada na sua ausência. Desta forma, ao não conferir uma substância palpável às restantes personagens, o realizador parece mostrar que Selma não as vê, abstraindo-se assim da sua existência em favor do seu filho e da sua música. Esta sensação é ampliada pelo genérico do filme, com o ecrã totalmente preto enquanto passa uma música de fundo. O filme é, portanto construído em torno de um ponto de vista inexistente, conferindo-lhe uma consistência etérea.
Brindado com a palma de ouro de Cannes, Dancer in the Dark (e com o prémio para a melhor interpretação feminina entregue, naturalmente a Björk/Selma) deve, apesar de tudo, a sua força ao seu final, de fortíssima manipulação de sentimentos. Não há, em Dancer in the Dark, a redenção final de Selma, tal como acontecia com a personagem de Emily Watson em Breaking the Waves ao som de sinos. O máximo a que Selma tem direito é a notícia da bem sucedida operação do seu filho, trazida momentos antes do seu enforcamento. Esta notícia proporciona a Selma uma última canção, canção que é abruptamente cortada pela abertura do alçapão e seu consequente enforcamento e morte. Poder-se‑à considerar este momento como a sua redenção, feita ao som de uma música iniciada por “Black night falling…”? Essa é uma resposta que von Trier parece querer colocar no campo do espectador, cortando ali o filme e iniciando o genérico final.
Nota final para dois pontos. O título original não foi aportuguesado. Com isso ganha o público e o filme. Talvez haja, de quando em vez um pouco de senso entre os tradutores e os distribuidores. A outra reflexão cai sobre a música. Não nos cabe analisar aqui a sua qualidade, mas será talvez algo desequilibrada, atingindo momentos perfeitamente integrados com o filme, com outros que parecem ali colocados por imperativos do realizador. Björk, que assinou a banda sonora, deverá Ter sentido algo semelhante, pois a guerra entre a artista e o realizador chegou ao ponto de aquela ameaçar não permitir a distribuição do albúm.
Será um filme com a qualidade e o génio que se reconhecem em von Trier? Talvez não, mas este filme confirma que von Trier será, a par com Steven Spielberg, o maior manipulador de emoções que existe hoje em dia no cinema mundial. Sendo esse o objectivo de um filme musical, von Trier parece, portanto atingir o seu intento, ainda que pela via mais longa. Fica-se agora à espera do filme porno que von Trier diz ter projectos de realizar. O novo choque?
João André