Comboio de Sal e Açúcar é um western africano que chega às salas portuguesas a 28 de setembro. Rodado em Moçambique numa co-produção internacional liderada por Portugal, o filme já passou por mais de 20 festivais, tendo estreado em Locarno e arrecadado prémios em Joanesburgo e Cairo, nas categorias de Melhor Filme e Melhor Realizador. Vai estrear ainda este ano nos Estados Unidos, Suíça e França. É exibido no Mini-Auditório Salgado Zenha no próximo dia 12 de Outubro às 22:00. A entrada é livre.
Um Western Africano
Um comboio. 400 quilómetros em linhas sabotadas. Dois capitães lutam pelo amor de Rosa. Entre feitiçaria e ataques constantes, um comboio com centenas de pessoas é obrigado a inúmeras paragens até chegar ao seu destino. Uma viagem que decorre a 5km/h através de luxuriantes paisagens africanas, onde o perigo espreita antes da próxima estação.
Introdução Histórica
1964, em Moçambique, então uma colónia portuguesa, as forças da guerrilha da FRELIMO — Frente de Libertação de Moçambique — iniciam uma guerra pela autodeterminação do país. Dez anos depois, a FRELIMO assumiu o governo do país. O novo governo, sob a presidência de Samora Machel, estabeleceu um Estado unipartidário baseado em princípios marxistas. Começa pouco depois uma longa guerra civil, sustentada pela Rodésia e pela África do Sul, países vizinhos com governos de minorias brancas, que na altura não queriam que o governo revolucionário moçambicano servisse de exemplo na região. As forças oposicionistas ao Governo intitulam-se Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO). Esta guerra leva o país à ruina com a quase total destruição da agricultura e das infra-estruturas terrestres. É só no início dos anos 90 que o país inicia reformas estruturais e volta a ter paz. Actualmente, Moçambique volta a ser assolado pela violência, tendo havido vários confrontos armados no centro e no norte do país.
Estive em Lichinga, capital da Província do Niassa, último ponto onde os comboios paravam antes da fronteira com o Malawi, seu destino final.
A cidade estava isolada do resto do país por via rodoviária. A chegada dos comboios era cada vez mais espaçada e uma enorme multidão reunia-se na estação para os receber.
Tive a oportunidade de ver uma dessas chegadas e o estado terrível daqueles que desembarcavam, semanas depois do início da viagem em que arriscavam as suas vidas.
— Licínio Azevedo
ENTREVISTA COM LICÍNIO AZEVEDO
O Comboio de Sal e Açúcar existiu realmente?
Durante a guerra civil em Moçambique, que acabou em ‘92, eu ouvia muitas histórias sobre este comboio, no norte do país, histórias maravilhosas. Não havia nada no país, nem mesmo açúcar para o chá, sendo que antes Moçambique era um grande produtor de açúcar. Nessa época, chegavas a um café, pedias um chá, e diziam-te: “Há chá… Mas não há açúcar.” Então as mulheres, no norte do país, descobriram uma maneira astuta para sustentar as suas famílias. Compravam sal no litoral moçambicano e depois viajavam 700 km até ao Malawi, no interior do continente. Uma viagem que hoje leva menos de um dia, na época podia levar até três meses. Levavam sal para vender no Malawi e com o resultado compravam açúcar, depois regressavam e vendiam o açúcar, e com isso sustentavam a família por vários meses. Depois, toca de viajar outra vez.
Este comboio levava passageiros?
Durante a guerra não era suposto, mas as pessoas viajavam voluntariamente, sem pagar bilhete, em vagões abertos, com uma antiaérea e com uma escolta militar. Era um comboio que partia uma vez de três em três meses, quando as condições permitiam. Depois há uma parte de ficção, a existência de um barco de pesca gigante…
Se a acção se passa no norte do país, porque não filmar lá?
O norte do país está totalmente modificado, modernizado e, actualmente, em guerra. Por isso optámos pelo sul de Moçambique, onde as linhas férreas e estações ainda correspondem ao período da história, tal como as locomotivas que nelas circu
lam… Filmámos na linha que vai de Maputo para a Suazilândia e para a África do Sul mas tivemos um grande trabalho de decoração para dar outros tons às estações tal como recuperar as máquinas e vagões de escolta que já estavam desactivados.
Porque não fizeste um documentário?
Na época ainda tentei mas os produtores diziam “Você é maluco! Quem é que vai colocar dinheiro para equipamento e tudo mais, para fazer uma viagem de três meses? Ainda morrem, e depois não há filme.” Logo que a guerra acabou, a primeira coisa que fiz foi apanhar esse comboio. Fiz a viagem várias vezes, entrevistando os trabalhadores dos Caminhos-de-Ferro, as mulheres que trocavam o sal pelo açúcar, os militares… E escrevi um livro — Comboio de Sal e Açúcar. Para mim, tudo o que não é feito no momento, em cinema, deixa de ser documentário. Não gosto de fazer documentários sobre o passado, gosto de fazer sobre o que está a acontecer. Para mim, tudo o que já aconteceu, passa a ser ficção.
O teu livro começa com uma frase: “Aqueles que nos atacavam eram terríveis, mas aqueles que nos protegiam por vezes eram piores”. Qual é o significado simbólico do comboio?
É como um microcosmos onde coexistem muçulmanos, cristãos e animistas, numa atmosfera de traições, ataques e morte, mas também de esperança renovada. “Quando o sol nasce todas as esperanças se renovam”, já dizia o meu velho Hemingway. E assim se vai mantendo o equilíbrio, porque dentro do comboio todos os passageiros arriscam as suas vidas. Durante a guerra temos tendência a diferenciar os bons dos maus, mas isso nem sempre é fácil. Aqueles que atacam o comboio são terríveis mas por vezes, aqueles que o deveriam proteger, são muito piores. No filme a Rosa testemunha a dura realidade da guerra e por isso ouvimo-la dizer essa frase…
Estes personagens são reais?
Alguns são levemente baseados em personagens reais, outros são completamente ficcionais, como o personagem principal, Taiar. Neste filme há três grupos de personagens: os militares que protegem e controlam o comboio, entre os quais há os bons e os maus; os trabalhadores dos caminhos-de-ferro que permitem que o comboio siga o seu caminho e que são a intelligentsia; e os civis, sobretudo mulheres, que viajam e que representam a luta humana mais básica: a sobrevivência.
Como defines a relação entre Taiar e Salomão?
O Taiar é um tenente com uma mentalidade moderna, científica, que estudou numa academia militar na Ucrânia, ex-União Soviética e que tem um pensamento diferente por ser jovem, tenente e ter recebido formação fora do país. O seu antagonista é o alferes Salomão que ganhou a sua patente na guerra. É um grande combatente mas tem uma visão mais fechada. Sente-se dono do mundo, dono das mulheres, do comboio…
Existe um lado mágico nesta guerra?
Existe na guerra como existe na própria vida quotidiana dos moçambicanos. Não diria exactamente magia mas uma relação com os antepassados, com os espíritos…. Em Moçambique, durante a guerra civil, houve uma terceira força armada, que estava ao lado do governo da FRELIMO, que eram os Naparamas, um exército de homens à prova de balas, invulneráveis, que lutavam nus e usavam armas tradicionais, arco e flecha, catanas, não usavam armas de fogo. Bastava que o inimigo soubesse da aproximação dos Naparamas e retirava. Até que um dia mataram Manuel António, o comandante dos Naparamas, com 150 tiros. E aí disseram: “Viram, não é à prova de bala.” Mas logo apareceu uma justificação: o inimigo havia enviado uma feiticeira, uma mulher lindíssima, que o seduziu, levando‑o a fazer amor com ela antes de combater. Eles tinham de cumprir um ritual, não podiam comer comida com sal durante três dias antes de ir para combate, e não podiam fazer amor. Ele fez amor e por isso foi morto. Esta foi a explicação dada pela população. A magia faz assim parte da vida quotidiana, e em África, não há guerra sem magia.
E algum personagem encarna essa magia?
Sete Maneiras, o comandante responsável pela protecção do comboio, é um feiticeiro à prova de bala que na sua juventude teve a iniciação tradicional dos makondes no norte de Moçambique. Para ser adulto tem que se matar um leão com arco e flecha. Sete Maneiras, como passou por essa iniciação, consegue falar com os pássaros, transformando-se mesmo num para fazer reconhecimento. Já o comandante inimigo, Xipoco (“fantasma” em língua xangana), também se transforma em macaco para fazer o mesmo.
Como foi rodar todos os dias com 13 vagões?
Fantástico e infernal. Impossível sem o apoio incondicional dos Caminhos de Ferro de Moçambique. Durante a rodagem, o engenheiro de som fez um trabalho extraordinário com ele, com os sons das rodas a ranger, da locomotiva a trabalhar… Naquele tempo nunca podiam desligar o motor da locomotiva, porque depois podia não pegar, então transportámos essa realidade para o filme. O som do comboio é um som permanente, uma banda sonora fundamental que foi pontuada pelo Schwalbach com instrumentos tradicionais africanos, tambores e com a mbira para pontuar as cenas de amor.
Porque dizes que este filme é um western?
Eu adoro western, é o meu género preferido, e o filme tem um pouco essa estrutura. Nos filmes de cowboy o bandido sempre anda em quadrilha, então Salomão tem os seus seguidores, e Taiar também tem os seus. É como o Zorro e o Tonto, tem o Taiar que é o Zorro e tem o Tonto que é o índio de lado, que é o adjunto dele e que no final assume o papel do Taiar. O Tonto passa a ser o Zorro. Sempre comparo os dois com o meu western preferido, Shane, filme do George Stevens, de 1951. Também há o facto de termos rodado nas paisagens do sul de Moçambique, que são magníficas e que nesta época do ano correspondem também aos filmes como os de John Ford, em que o cowboy aparece naquela planície com o capim alto, amarelo… e que na pós-produção ainda lhe conferimos uma temperatura de cor mais quente. É o primeiro western africano moderno. Quem gosta de filmes western vai-se encontrar neste filme.
LICÍNIO AZEVEDO
Licínio Azevedo é cineasta e escritor moçambicano. Faz parte da geração de cineastas formada no Instituto Nacional de Cinema de Moçambique, nos anos que se seguiram à Independência, com a intervenção de diferentes realizadores, entre eles Ruy Guerra, Godard e Jean Rouch. Como escritor e como cineasta, a sua obra é estreitamente ligada à realidade do país e aos diversos momentos da sua conturbada evolução. Entre o documentário e a ficção, Licínio mistura ambos os géneros, inspirando-se sempre em acontecimentos narrativos e personagens cativantes.
Filmografia Seleccionada
2016
COMBOIO DE SAL E AÇÚCAR
93’, Ficção
2012
VIRGEM MARGARIDA
90’, Ficção
2010
A ILHA DOS ESPÍRITOS
63’, Documentário
2007
HÓSPEDES DA NOITE
53’, Documentário
2006
O GRANDE BAZAR
56’, Ficção
ACAMPAMENTO DE DESMINAGEM
60’, Documentário
2003
MÃOS DE BARRO52’,
Documentário
2002
DESOBEDIÊNCIA
92’, Ficção/Documentário
2001
A PONTE
52’, Documentário
ELENCO
Taiar
Matamba Joaquim
Rosa
Melanie de Vales Rafael
Salomão
Thiago Justino
Sete Maneiras
António Nipita
Mariamu
Sabina Fonseca
Josefino
Horácio Guiamba
Pureza
Celeste Baloi
Amélia
Hermelinda Simela
Adriano Gil
Mário Mabjaia
Celeste Caravela
Victor Raposo
Omar Imani
Abdil Juma
Ascêncio
Absalão Narduela
Herculano
Tunecas Xavier
Danger Man
Mário Valente
Baioneta
Absalão Maciel
Canivete
Carlos Novela
Calisto Confiança
Abdul Satar
Comandante Xipoco
Alvim Cossa
EQUIPA
Director de Fotografia
Frédéric Serve
Engenheiro de Som
Philippe Fabbri
Sound Design & Misturas
Matthew James
Kiko Ferraz
Montagem
Willem Dias
Direcção de Arte
Andrée du Preez
Figurinista
Isabel Peres
Banda Sonora Original de
Joni Schwalbach
Adaptado do livro homónimo por
Luis Carlos Patraquim
Argumento de
Licínio Azevedo
Teresa Pereira
Um filme de
Licínio Azevedo
Produzido por
Pandora da Cunha Telles & Pablo Iraola
Co-produzido por
Licínio Azevedo , Philippe Avril , Beto Rodrigues, Tatiana Sager , Elias Ribeiro & John Trengove