Assim do livro ao filme não sinto que alguma coisa de fundamental se perdesse para a intenção com que o realizei — como sinto que alguma coisa de novo se criou para lá da arte da imagem em que se transfigura.
— Vergílio Ferreira
Podemos asseverar que o cinema também tem uma função de contar histórias, por muito que por vezes se incorra no erro de ficarmos presos a conceitos meramente técnicos e não estéticos. A adaptação de grandes obras da literatura a um argumento de obra cinematográfica sempre foi um dos objectivos dos nossos maiores realizadores. Apesar de Ingmar Bergman ter sempre afirmado que o Cinema e a Literatura não são convergentes e nada que ver, acreditamos que existem felizes casos que excepcionam esta falsa dicotomia. Caso clássico é o dos filmes do saudoso João César Monteiro, que não se tratando de adaptações, mostra-nos antes uma dança atrevida entre a escrita e a interpretação, fundindo-se e superando-se.
Mostrar cinema tem sido sempre o escopo do Centro de Estudos Cinematográficos da Associação Académica de Coimbra, mas acima de tudo trata-se de mostrar e divulgar cultura. Sendo Coimbra um espaço de partilha de informação, de crescimento individual de toda a índole, acreditamos que essa evolução tornar-se-ia lacunosa sem cultura cinematográfica. Cinema é estímulo; e deve manter-se vivo mesmo depois de ser visionado, tendo que “ser falado” como diz João Bérnard da Costa. Não achamos que a obra cinematográfica substitua, de todo, a literária – concordando aqui neste ponto com Bergman -, mas poderá ser um franco estímulo ao curioso, quando uma boa adaptação se trate. É impossível, no nosso ver, assistir a filmes como o ‘Ma Nuit Chez Maud’ sem sentir uma necessidade premente de ir às bibliotecas ler Pascal. O cinema é também este bicho que fica dentro do espectador, que o leva a conhecer em si uma sensibilidade cultural que por vezes lhe era desconhecida. Criticar o artista cinematográfico que se inspira em livros, é o mesmo que criticar o escritor que se inspira em obras cinematográficas ou na própria natureza. O artista consome o envolvente e isso inclui todas as outras manifestações artísticas.
Neste ciclo, queremos mostrar cinema que só foi possível graças à existência de uma grande peça literária como inspiração. Iniciamos o nosso percurso com a obra ‘A Princesa de Clèves’ (1678) de Madama La Fayette que inspirou dois grandes realizadores: Manoel de Oliveira, que em 1999 nos mostrou ‘A Carta’ e Cristophe Honoré que em 208 realiza ‘A Bela Junie’. Há aqui uma dupla inspiração que merece ser assistida e discutida, carregados de tensão emocional típicas da linguagem do século XVII, mas rectificada ao mundo contemporâneo da 7ª arte. Em nenhum dos filmes se trata de uma vulgar adaptação da obra escrita (como vários filmes de Hollywood habituaram o cinéfilo), o espectador não irá assistir a um filme histórico, antes a uma total convergência entre a linguagem clássica, que é sempre actual, sendo o cinema o modo desta se expressar.
Passando para o Irão, encontramos a obra do premiado Abbas Kiarostami com o seu ‘Shirin’ (2008) que vem desmentir a existência da dicotomia cinema e literatura. Na verdade, Kiarostami apresenta-nos uma adaptação de poema persa do século XII, mas recusando a história adaptada apreendendo-se antes com o impacto desta. Há um rasgo de catarse no cinema que Kiarostami agarra com a câmara pelas caras das variadas mulheres iranianas e que nega assim tanto o poema como o filme, centrando-se naquele que os capta.
Falar de cultura cinematográfica sem referência a F. W. Murnau é como discutir literatura sem uma breve referência que seja a Goethe. E é essa necessidade que é conseguida saciar com ‘Fausto’ (1926), onde Murnau nos mostra o melhor dos inícios do cinema com o melhor da adaptação da obra ao argumento, em que o Homem desafia Deus, em que o cinema continua a mostrar que irá perdurar.
Se falamos de clássicos, encerramos o ciclo com uma quinta sessão dedicada à cultura norte-americana. Em ‘Boneca de Luxo’, Blake Edwards mostra-nos a obra inspirada no livro de Truman Capote de título homónimo. Edwards marca não só o cinema como gerações de amantes por todo o mundo. Premente é mostrar exemplos em que aquele que leu o livro, consegue ser surpreendido mesmo assim com o desenrolar do argumento adoptado.
Quinta, 3 de Março:
A Bela Junie de Cristophe Honoré, 97′ (2008)
Quinta, 10 de Março:
Carta de Manoel de Oliveira, 107′ (1999).
Quinta, 17 de Março:
Shirin de Abbas Kiarostami, 92′ (2008)
Quinta, 24 de Março:
Fausto de F.W. Murnau, 126′ (1926)
Quinta, 31 de Março:
Boneca de Luxo de Blake Edwards, 115′ (1961)