O CEC apresenta nesta semana mais uma das suas críticas cinematográficas das revistas Apokalipse. Publicamos um texto do sócio Bruno Dias sobre o filme “Ghost Dog: The Way of the Samurai” do realizador Jim Jarmusch, no número 29, da Revista Apokalipse (2001).
Ghost Dog, 1999
O filme inicia-se com música rap que combina bem com a fluidez dos planos-sequência picados que mostram a cidade e se misturam com outros planos-sequência contra-picados onde se vê pombos a esvoaçar. Um dos “afilhados” estava com Louise (Tricia Vessey), que era a sobrinha do “padrinho” Ray Vargo interpretado por Henry Silva. Tinha de ser por isso castigado e para executar esses castigos Louie (John Tormey) tinha o Ghost Dog. Louie não entendia muito bem a dedicação de Whitaker para consigo, sabia apenas que ela se devia ao facto de em tempos ele o ter salvo das mãos de uns racistas que o estavam a espancar. Whitaker vive só para si e para o seu senhor. A sua missão enquanto samurai é defender e servir o seu senhor. A sua eficácia e descrição tornam-no quase insubstituível para Louie.
O código dos “padrinhos” exige no entanto que o estranho que matou um deles seja punido. Ao decidirem assim vão provocar uma fusão entre dois mundos distantes até ai ligados tenuamente por pombos correio. A comunicação entre Louie e Ghost Dog é feita através desses pombos. Whitaker é praticamente invisível para eles pois o seu mestre não sabe sequer onde ele mora.
São os italianos que iniciam as hostilidades. As acções desencadeadas por eles são totalmente desorganizadas e amadoras indo ao ponto de matar o homem errado. Acabam, na incapacidade de atingirem o seu objectivo, por matarem os pombos dele. Quando Whitaker chega ao terraço onde morava encontra apenas o silêncio, destruição e o vazio. O seu colchão estava manchado com o sangue de um pombo que nela jazia.
O lance deles estava realizado, era agora a vez de Ghost Dog. À inépcia e paixão dos primeiros vai Whitaker opor a frieza do seu método e a sua eficiência absoluta que são exemplarmente mostrados na forma como ele elimina Sonny Valerio (Cliff Gorman). Ghost Dog aponta a mira laser da sua arma na testa de Sonny, que se apercebe de uma luz vermelha vinda do ralo do lavatório. Dispara então um tiro que passa através do cano do lavatório atingindo‑o, proporcionando um plano violento mas com uma beleza perturbante da mistura do branco da bacia e do vermelho do sangue.
Com a invisibilidade que o caracteriza e uma arma mais sofisticada Whitaker precipita-se sobre aqueles que perturbaram a sua paz. O cume da sua represália dá-se no assassinato Ray Vargo de uma forma simples e fria. Ray quando vê Ghost Dog entrar na sua sala levanta-se da poltrona, abotoa o colete e prepara-se para ir ter uma conversa de cavalheiros com ele, e espera que este o reconheça, tal como nós, como um símbolo de poder. É hábito dizer que para sermos convincentes no papel de lideres ou reis, os que nos acompanham tem de nos tratar como tal. Até esse momento todos os seus “afilhados” o tratavam assim. É Whitaker que ignorando esse estatuto estilhaça a ordem aparentemente sólida daquela família.
O caos dai resultante, bem espelhado na face de Louise Vargo quando Ghost Dog se vira para ela depois do assassínio de Ray, precisa de ter o seu fim. Sob pena de ser a causa da extinção do clã se nada se fizer. Para isso é necessário um novo líder para reorganizar as estruturas de poder. Temos então no fim um duelo ao estilo do velho oeste com direito a uma citação cinéfila ao filme “High Noon”. Trata-se porém de uma subversão, pois no Oeste o duelo final seria o ponto de intensidade máxima onde a destreza e a coragem dos “cowboys” seria posta à prova. Nada disso acontece aqui, pois Ghost Dog simplesmente atira com a sua arma para o chão. A sua condição de samurai impede‑o de atentar contra o seu senhor, e é exactamente Louie que está à sua frente. Este porém não tem problemas de consciência em atirar contra ele deixando‑o estendido na estrada a escorrer sangue tal como anteriormente tinham ficado os seus pombos.
Este filme baseia-se essencialmente na incapacidade de compreender os códigos pelos quais os outros se regem. Disso resultou a violência entre Whitaker e o clã italiano; as dificuldades de comunicação entre o vendedor de gelados Raymond, interpretado por Isaach De Bankolé, e Whitaker por falarem línguas diferentes. O facto do próprio Ghost Dog considerar esse homem o seu melhor amigo mostra bem a solidão e dedicação deste para com o seu mestre. Porém entre Ghost Dog e Raymond essa falha de comunicação é compensada por gestos de amizade que permitem que eles se entendam. Whitaker só tem uma relação normal com uma rapariga chamada Pearline (Camille Winbush) que estabelece contacto com ele.
Ao longo do filme enquanto se desenvolvem as peripécias vamos assistindo a uma partida de xadrez entre Ghost Dog e Raymond. Ambos jogam segundo as mesmas regras, o que lhes permite entenderem-se e desfrutar do jogo sem desentendimentos.
Está assim subjacente a este filme uma metáfora sobre a impossibilidade de entendimento entre os seres humanos se estes não partilharem entre si um respeito e compreensão mutuo pela cultura e tradição uns dos outros.
Bruno Dias