O CEC apresenta esta semana um texto do sócio João Vaz Silva. A crítica cinematográfica ao filme A raiz do Coração de Paulo Rocha esteve presente no número 29 da Revista Apokalipse (2001).
A RAIZ DO CORAÇÃO de Paulo Rocha
Antes de estrear o seu filme sobre o Porto para a Capital Europeia da Cultura, Paulo Rocha apresenta «A Raiz do Coração», uma obra corrosiva e transgressora rodada em Lisboa.
Acentuando bem a presença de um grupo de travestis e drag queens, o realizador portuense filma uma espécie de musical extremamente colorido que parte de uma ideia da sua autoria que conta já com mais de dez anos. O resultado é, na verdade, surpreendente.
Decorre o ano de 2010 e Lisboa celebra as Festas de Sto. António. Ao mesmo tempo, Catão, político corrupto, prossegue a sua campanha para a Câmara da Cidade. Sílvia, um jovem transexual, continua a resistir ao assédio do candidato ao poder. Enquanto isso, um grupo de travestis torna-se vítima de uma cerrada perseguição policial.
Apresentado como uma fantasia musical, «A Raiz do Coração» é um objecto de cinema politicamente incorrecto e dotado de uma enorme conotação sexual. A predominância das minorias maltratadas é notória num filme onde existem poucas mulheres. Em destaque, estão os travestis, os responsáveis pelo bulício nas festas da cidade e, ao mesmo tempo, pelo seu carácter “irreal”.
Em termos visuais, «A Raiz do Coração» é bastante marcante: tanto as cenas de exterior como as de interior são captadas de forma imaginativa e, ao contrário dos filmes anteriores, recorre muitas vezes a imagens em vídeo digital. No que diz respeito à banda-sonora, demonstra ser essencial numa obra repleta de canções. Os temas que surgem no filme interpretados pelos actores (e não só) têm letra de Regina Guimarães e música de José Mário Branco, o mesmo que participara no anterior «Rio do Ouro». Na verdade, esta é uma obra que flui através da música e mesmo as cenas de luta surgem coreografadas.
Para dar às personagens que compõem este autêntico baile de máscaras, Paulo Rocha conta com um extenso elenco do qual se destaca claramente Luís Miguel Cintra que interpreta quatro personagens – Catão, Sto. António (o real e o impostor) e um travesti negro. Na pele de Sílvia, encontra-se Joana Bárcia e como Vicente, o polícia provinciano, está Melvil Poupaud, um actor francês que trabalhou com Raul Ruiz e Eric Rohmer. A inevitável Isabel Ruth surge como Ju, a dona da Photo Française, lugar estratégico para o negócio da pornografia e chantagem política.
“A Raiz do Coração” não é o melhor filme de Paulo Rocha apenas por ser demasiado pretensioso. Contudo, constitui mais um excelente contributo para o cinema Português que consegue, cada vez mais, marcar a diferença pela sua especificidade e inovação constantes. Quer a preto quer a cores mais vivas.
João Vaz Silva